Milhares de pessoas têm conseguido dar vida à própria vida estimulados por ensinamentos de grandes mestres da atualidade. O jornalista Lauro Henriques Jr. entrevistou alguns deles e resume o que considera mais relevante – a começar pelo bem que tais gurus fizeram para ele próprio
“Hoje, defino minha espiritualidade citando Gilberto Gil: ‘Minha ideologia é o nascer de cada dia. E minha religião é a luz na escuridão’”, conta o mineiro radicado em São Paulo, Lauro Henriques Jr., 42, autor da trilogia Palavras de Poder. A série de livros – o último foi . A série de livros – o último foi lançado no ano passado pela editora Alaúde) é formada por 33 entrevistas com alguns dos mestres religiosos, espirituais e do autoconhecimento mais influentes no momento. Há autoridades como o xamã mexicano Don Miguel Ruiz, herdeiro da sabedoria ancestral dos toltecas, o escritor alemão Eckhart Tolle, autor do best-seller O Poder do Agora (ed. Sextante), e brasileiros como Frei Betto, Monja Coen, Sri Prem Baba e Rubem Alves. Desses encontros, mais do que dogmas ou uma resposta única para a incessante viagem do homem ao centro da alma, surgiu um conjunto de olhares plurais para os diferentes ângulos da fé, do respeito ao próximo e da iluminação. O autor propõe, inclusive, uma troca de perguntas e respostas entre esses gurus com a intenção de alargar os conceitos da espiritualidade para além dos limites de templos, igrejas ou sinagogas. “No fundo, é o livro que eu queria ter lido quando comecei a minha própria busca espiritual”, diz Henriques Jr.. Por que, então, ainda nos ofendemos tanto em nome de Deus? Após o contato com tantos sábios, o escritor oferece sua visão.
Você cita Gilberto Gil para responder qual é a sua religião. Por quê?
Porque as coisas que me trazem luz nessa escuridão do mundo contemporâneo são várias. Tenho vários caminhos de fé. No altar de casa, convivem o retrato de Nossa Senhora Aparecida, uma imagem ligada ao hinduísmo, outra ao taoísmo e uma associada ao xamanismo amazônico. Todas falam à minha alma. Assim como o cristianismo primitivo.
O que é o cristianismo primitivo?
Dentro do cristianismo há várias traduções da mensagem de Cristo: a versão do cristianismo presbiteriano, do católico, do batista. O primitivo é aquele que busca a mensagem de Cristo em sua fonte original, sem passar pela interpretação que alguma igreja deu.
Pode dar um exemplo mais específico?
Quando Cristo falou “sou o fi lho de Deus”, quis dizer que não precisa de ninguém para fazer a sua conexão com o sagrado. O Frei Betto fala algo superbonito sobre isso na entrevista que me deu para o livro. Em vez de fé em Jesus, ele diz que devíamos ter a fé de Jesus. Isto é, reduzir a contradição entre a oração e a ação. Segundo Frei Betto, mais vale um ateu que ama, do que um crente que odeia e discrimina. Além do mais, esse Cristo é qualquer homem. Um tibetano, um hindu… Porque o que move o Cristo é o mesmo que move o Buda. Ou seja, a prática do amor, da humildade…
Explique: “espiritualidade é agir tendo o amor como mestre.”
Sim, quando você está agindo a partir de um núcleo de tolerância, paciência e respeito pela realidade do outro, você está deixando o amor ser o mestre.
Saber calar é um exemplo prático disso. Sri Prem Baba me ensinou que dizer a verdade não significa sempre falar tudo o que pensamos, ferindo as pessoas, desconsiderando a possibilidade de elas não estarem prontas para ouvir o que você tem a dizer. Isso seria como enfiar o dedo na ferida sem ter o remédio para a cura. Tem mais a ver com o exercício do ego, porque acho que sei mais do que o outro, do que com o querer bem do outro.
Estamos falando de um refinamento da sensibilidade?
Claro. Quantas pessoas só falam do espírito e estão distantes do abraço? Nessas entrevistas todas que fi z, percebi que espiritualidade não é o céu. É a terra, o aqui e agora. Em nosso encontro, pouco antes de morrer, Rubem Alves falou sobre a forma mais alta de oração. Para ele, era justamente a reverência ao cotidiano: “O arco-íris, a chuva, o cheiro de café, um bolo de fubá, o sorriso de uma criança – tudo isso são pulsações do sagrado. É preciso reencontrar Deus no assombro da vida”.
Ouvir Beatles pode fazer alguém melhor?
Gosto de música caipira, de jazz, de rock, de blues. Para mim, o trabalho espiritual é assim também. Eu cresço, aprendo e me divirto com tantas tradições diferentes que, na verdade, me conduzem para o mesmo lugar: me colocam em contato comigo mesmo, exatamente como a música faz. Quando ouço Obladiobladá, dos Beatles, me sinto um cara mais legal, capaz de ser mais legal com os outros. As pessoas são diferentes, têm gostos tão diferentes, como seria possível haver uma religião só para todas?
A tolerância religiosa estava presente entre as autoridades que entrevistou?
A mesa redonda que criei – um entrevistado perguntando para o outro – agradou a todos. Porque as linhas espirituais dialogam entre si. A conversa com esses mestres é possível, agradável e enriquecedora.
Por que, então, você acha que as pessoas se ofendem em nome de Deus?
Talvez porque existe uma incoerência entre o que rezamos, pedimos e fazemos. Há uma incoerência entre a intenção e a prática, o discurso e a ação. Quando estou rezando em nome de Alá, estou rezando em nome do amor, mas aí, por algum motivo, ocorre a distorção. O crente que odeia e discrimina em nome de Deus faz isso porque esqueceu que a raiz de tudo é o amor, é a vida.
A falta de memória é um problema.
(risos) Don Miguel Ruiz fala que a grande mentira que a gente acredita e reafirma o tempo todo é: ‘eu não sou bom o sufi ciente’. Essa mentira está ligada ao esquecimento de nossa verdadeira identidade e só serve para nos sabotar e maltratar. De acordo com esse xamã, que já tem 89 anos, precisamos anular essas crenças limitantes e que impedem nossa realização. Ele sugere: “Faça o seu melhor, nem mais nem menos. E seja impecável com a palavra. Na hora de falar com o outro, do outro, ou principalmente de você mesmo, não fale mal”.
A não aceitação de si mesmo, aliás, pode levar a agir com intolerância em relação ao outro também.
Sim. Eu convivo com você, mas não aceito você. Quero que seja diferente. Muito provavelmente, o fato é que não me aceito, mas como não posso mudar a mim mesmo, quero que você mude. E isso vira uma bola de neve. Eu não aceito a vida como ela é, então, entro em guerra com a vida, com as pessoas, com a natureza, exatamente como a gente vê todos os dias.
É nesse sentido que seu livro defende a espiritualidade com responsabilidade?
Mãe Stella de Oxóssi costuma dizer que a gente agride o outro porque projeta nele o mal que não vê em si mesmo. A mãe de santo, uma das mais influentes do Brasil, fala que todo mundo vai procurá-la dizendo ser vítima de mau-olhado. Ninguém nunca pede para dar um jeito na inveja que sente. Daí vem a lição dela: “Se você acha que é vítima de olho gordo, emagreça primeiro seu olhos”. A autorresponsabilidade envolve o entendimento de que se algo ruim está acontecendo, em parte, isso se deve ao modo como tem agido.
É quase como dizer que somos imperfeitos, não?
Como você vê aquele tipo de mestre que está sempre numa posição de perfeição absoluta? Vou dar um exemplo oposto. Fiz a entrevista com a Monja Coen numa terça-feira. A conversa fluía serenamente e quis saber como um mestre como ela lidava com momentos difíceis como a perda de um ente querido. “Há dois dias perdi meu pai. Vou dizer que não há sofrimento? Há. Mas vou procurar dar vida a essa vida na minha vida. O autoconhecimento me ajuda a não ficar presa na dor”, ela me contou. É bem diferente do blazê espiritual, que não se permitiria afetar pela dor porque vive em estado de dormência e se sente superior.
Superior?
O Eckhart Tolle diz que o verdadeiro despertar de uma pessoa acontece quando ela se liberta da ilusão de achar que é isso ou aquilo. A partir do momento que alguém se vangloria de ser o mais iluminado, pode acreditar que o ego espiritual entrou na parada e deturpou tudo. Pois toda a vivência da espiritualidade busca sempre a igualdade.
Os melhores líderes são os que melhor conseguem construir uma irmandade?
Não consegui entrevistar o dalai-lama. Mas você sabe que, quando ele viaja, depois de terminar todos os compromissos, ele reúne a equipe da limpeza, da cozinha, da segurança e aperta a mão de cada um num gesto de agradecimento? Pois sem o faxineiro, o dalai-lama não poderia usar o banheiro, por exemplo. Somos interdependentes. Então, por que olhar de cima? Em matéria de kung fu, o Bruce Lee foi melhor do que muitos; em matéria de budismo, o dalai-lama caminhou mais e está à nossa frente, é uma luz que nos guia, mas em matéria de pão de queijo, a minha mãe, Amarílis, dá um banho em qualquer um. Cada pessoa tem o seu talento.
Resumindo, qual é a sua definição de sagrado?
Aquilo que está a favor da vida.
E onde a gente mais peca no que se refere ao sagrado, a espiritualidade?
Quando dissocia esse termo da vida cotidiana. Quando a gente deixa de entender que é no dia a dia que ocorre essa vivência. Não é no ashram, no templo, na sinagoga. Se conseguir ser mais tolerante hoje do que fui ontem, mais amoroso hoje do que ontem, já estou feliz