A relação especial entre deficientes visuais e seus animais garante aos primeiros uma vida com mais autonomia e felicidade
Th ays Martinez lembra do primeiro dia que conseguiu caminhar sozinha à beira-mar, sentindo as ondas que chegavam à areia. A liberdade para estar ali sem assistência de outra pessoa só foi possível para a advogada, deficiente visual desde os 4 anos, por conta do labrador Boris, seu primeiro cão-guia e um dos poucos animais treinados para essa função no Brasil dos anos 2000.
Essa parceria construída entre os cães e seus tutores proporciona um expressivo salto de qualidade de vida e independência nem sempre compreendido por um vidente – recentemente, uma professora gaúcha que passava férias em Balneário Camboriú, SC, foi constrangida por banhistas que chamaram a polícia por estarem incomodados com a presença do cão-guia ao lado dela no mar (algo permitido por lei).
Muito antes do episódio, mas movida pela desinformação que gira em torno do tema, Thays tornou-se uma embaixadora da causa. Hoje preside o instituto IRIS e trabalha pela difusão do cão-guia. “Minha vida é AB e DB, antes e depois do Boris. Formada na USP e concursada, já tinha essas grandes questões da vida resolvidas. O que ele me trouxe foi uma realização com as pequenas coisas: poder sair pra dar uma volta sem medo de cair, caminhar no parque”, conta ela. E, depois, a coragem para mudar de emprego e morar sozinha.
Músico, técnico em informática e estudante de massoterapia, Daniel Bernardini dá conta de uma agenda movimentada na companhia de Árya, sua guia. Assim como Thays, ele lembra do primeiro dia que andou sem receio, na avenida da praia. “A transição da bengala para o cão-guia é um divisor de águas”, conta. “Os obstáculos estão ali, mas se tornam transparentes, porque o cão desvia deles.” Além de ajudar a atravessar a rua, o animal decora caminhos, nome de locais e palavras-chave como escada e elevador. “O animal vira uma extensão do nosso corpo. É como se um pudesse ler o pensamento do outro”, explica Thays.
Cães-guias são doados já adultos e sua entrega segue critérios de necessidade e perfil. Alguém com vida mais agitada precisa de um guia que goste da rotina cheia, e aqueles com uma vida mais tranquila não podem ter um cão que precise de muita atividade. “É um animal de trabalho, mas ele gosta de trabalhar porque há afeto pelo dono e vice-versa”, diz Daniel.
Por causa do tempo que leva para formar um cão-guia, seu custo é alto. Daí a baixa disponibilidade de animais: estima-se que no Brasil existam só 100 deles, enquanto há 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual. Depois de anos sendo barrada no metrô, Thays viu duas leis garantirem seu direito de ir e vir acompanhada do parceiro. Boris virou ícone da acessibilidade e foi até personagem de livro. Abriu os caminhos para Diesel, o labrador que hoje acompanha a advogada.