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De que valores estamos falando?

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Para o economista Ricardo Abramovay, uma sociedade mais sustentável e feliz se faz com a soma de ética, colaboração e até, acredite, uma cota de espiritualidade

Quando pensamos em economia, logo nos vêm à cabeça índices, bolsa de valores, aumento do emprego ou do desemprego, rendas internas brutas. Mas uma conversa com Ricardo Abramovay, professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, demonstra que há espaço para pensar menos em números e mais em consciência e responsabilidade. Autor de dez publicações, entre elas Muito Além da Economia Verde (Planeta Sustentável), sua compreensão vai bem longe. Para ele, fazer com que a vida das pessoas valha a pena ser vivida seria a verdadeira missão dessa disciplina muitas vezes reduzida pelo senso comum ao universo dos algarismos. “Isso é culpa dos economistas”, brinca o professor, cujo próprio estilo de vida desmistifica o ar cartesiano dos mais dados às estatísticas. Abramovay é usuário de bicicleta e transporte coletivo, e, sobretudo, gosta de andar a pé. “Reduzir ao mínimo o uso do carro faz a gente gostar mais da cidade”, afirma. Melhorar a qualidade da urbe, aumentar a convivência nos espaços públicos, produzir bens que realmente estejam em harmonia com o meio ambiente, dar dignidade aos trabalhadores que colocaram seu suor naquilo são as frações pelas quais esse humanista evidencia que a economia tem muito mais a ver com princípios de um líder como Gandhi do que se pode imaginar. Confira a seguir.
O senhor diz que a economia não deve apenas propiciar emprego e arrecadação de impostos, mas produzir algo realmente útil à sociedade. Ela deve trabalhar pelo bem-estar? 
Uma parte do sistema econômico nos oferece bens e serviços necessários e prazerosos. É o caso da gastronomia de qualidade, doméstica ou em restaurantes. Discos, livros, meios pouco poluentes de transporte e produtos para a saúde também entram nessa lista. Mas, infelizmente, os produtos cujo consumo comprometem a saúde e a vida social ainda são a maioria. São coisas prejudiciais não apenas ao planeta e às condições sociais como também têm resultados distantes da promessa oferecida. 
Poderia citar um exemplo típico? 
O automóvel: um bem voltado a aumentar a mobilidade das pessoas, mas que, em qualquer cidade brasileira com mais de 500 mil habitantes, tem gerado imobilidade. Outro exemplo importante é a alimentação do dia a dia, em princípio algo para dar saúde e prazer. Hoje estamos consumindo cada vez mais comida ultraprocessada e com altas doses de açúcar. O resultado é uma epidemia de obesidade que, em certos países, atinge um terço da população. No Brasil, chega a 21%. Esses temas ganharam força nos últimos anos tanto pelo aumento populacional quanto pela tomada de consciência das pessoas, que querem bens e serviços que as ajudem a viver melhor.
A indústria em geral está enxergando isso? 
As marcas começam a se conscientizar. Na área têxtil foi formada a Sustainable Apparel Coalition, uma coalisão de marcas varejistas, indústrias, governos e ONGs para produzir um índice de qualidade de produção sustentável na área de vestuário, calçados e roupas de casa. Lembra daquela história do incêndio na fábrica de roupas em Bangladesh? [Em novembro de 2013, uma fábrica de roupas de Daca, capital de Bangladesh, que fornecia para Walmart, Gap e Zara, pegou fogo após trabalhadores em revolta lançarem uma chama – no ano anterior, um prédio de dez andares que abrigava confecções desabou matando 1.100 pessoas também em Bangladesh, chamando atenção para as condições precárias da produção têxtil no país, que exporta para grandes empresas ocidentais.] Para essas grifes, ver seus nomes associados a condições de trabalho degradantes e poluentes é muito ruim. Então, Nike, Puma, Gap, C&A, H&M e Walmart, entre outras, firmaram esse pacto de respeito a certas condições de produção tanto em relação à qualidade de trabalho como à geração de resíduos, que são muito produzidos pelo setor da moda. 

Isso se reflete em outros setores?
 De modo geral, as empresas estão percebendo que precisamos passar da economia linear (baseada na extração-transformação-consumo-descarte) para a circular, em que o remanescente do consumo é base para a criação de novos produtos e serviços. Não é simplesmente reciclagem, mas a revalorização daquilo que até então era descartado provocando problemas socioambientais. Pois sempre existe uma dimensão social associada à questão ambiental. Quando se joga garrafa PET no mar não se prejudica só os peixes, mas toda uma cadeira que afeta os pescadores. 

Existem  marcas brasileiras alinhadas com essa nova perspectiva socioambiental? 
Podemos citar o açúcar Native. Produzido em uma fazenda de 17 mil hectares no coração da cana-de-açúcar em Sertãozinho (SP), onde está a segunda maior biodiversidade de grandes mamíferos da região Sudeste. A indústria não usa um grama de fertilizante químico ou agrotóxico. Produzir gerando degradação tem os dias contados: impostos sobre emissões de carbono serão aprovados globalmente em pouco tempo, e quem lucra comprometendo o sistema climático passará a ter prejuízo.
Como promover o acesso mais igualitário aos bens de consumo sem esgotar o planeta? 
O combate às desigualdades deve ter uma vertente política – com leis que aumentem os impostos que donos de fortunas gigantescas têm que pagar – e outra científica e tecnológica. O raciocínio não pode ser: todo mundo quer ter um carro, então vou reduzir a quantidade de automóveis que os mais ricos podem deter de maneira que todos possam ter um veículo. O correto é se criar meios públicos de mobilidade eficiente. Falo não só do transporte coletivo mas também dos carros compartilhados, tanto da forma como conhecemos hoje quanto, no futuro, até de veículos sem motorista. Você entra, diz para onde vai e a máquina o leva. Assim, para que ter um carro só seu? Isso vai reduzir muito a quantidade de automóveis nas ruas. É um exemplo de como aumentar o conforto das pessoas diminuindo o uso de recursos. No caso da energia, o grande avanço é descentralizar – cada casa, escritório ou fazenda produzindo sua própria eletricidade via painéis solares e até vendendo o excedente – o que não consome, pode ser colocado na rede de distribuição de energia e o morador receber em dinheiro por isso. 
Então o que vai ajudar a salvar o planeta é um híbrido de tecnologia e economia colaborativa? 
Em seu livro A Conquista Social da Terra (ed. Companhia das Letras), o reconhecido pesquisador de genética Edward Wilson afirma que entre os seres vivos existem apenas 20 espécies colaborativas, e somos uma delas – ao lado de espécies como abelhas e formigas. A colaboração social faz parte do nosso DNA. O que a cultura digital traz é a possibilidade de cooperarmos com pessoas que nos são totalmente estranhas. É o que acontece quando alugo uma casa pelo Airbnb.com [site de aluguel por temporada], chamo um Uber [aplicativo que reúne motoristas particulares] ou participo de um site de financiamento coletivo como o Kickante. O que existia antes da internet era a economia solidária, caso em que uma fábrica ia falir e os operários se uniam e passavam a geri-la. A cultura digital amplia o poder colaborativo.
Você afirma que riqueza é diferente de prosperidade. Em que sentido?
 Prosperidade é aquilo que permite que aos indivíduos florescer. A riqueza não pode ser uma finalidade, mas um instrumento para que as pessoas vivam uma vida que valha a pena. Isso quer dizer não respirar ar poluído, morar em lugares seguros, ter possibilidade de interação com seus vizinhos etc. Quando o mundo tinha tinha 3 bilhões de habitantes, essa discussão não era tão relevante, pois tinha-se muito espaço para aumentar a produção de bens. Num mundo lotado de gente – em 2050 teremos um aumento da população mundial equivalente a dez vezes o número de habitantes do Brasil – precisamos ser muito criteriosos com o que vale produzir e consumir. Temos que investir no que dá lucro, gera emprego, e, mais, torna a vida das pessoas melhor, como educação, saneamento básico, acesso à saúde e uma reorganização de nossas cidades.
O que o senhor pensa sobre a polêmica do aplicativo Uber, em que taxistas pressionam os governos a proibi-lo por considerar que é concorrência desleal? 
Novas formas de prestar serviços ameaçam quem já está estabelecido. Na Revolução Industrial artesãos quebravam máquinas. Não faz muito tempo, hoteleiros tentaram impedir o Airbnb. Mas não há a menor chance de o que estava estabelecido frear para sempre a evolução.

Como as cidades entram nesse processo de forma positiva?
 
Nessa transição pela qual estamos passando é fundamental ampliar o espaço público, revalorizar a virtude da convivência como base para uma sociedade melhor. Isso supõe gente segura na rua, bicicleta. A redução da velocidade das marginais de São Paulo para 50 km/h é uma medida civilizatória. Em que país desenvolvido as pessoas rodam a mais do que isso dentro das cidades? Pois a cidade é para as pessoas, e o carro tem que respeitar. Aqui parece que é o contrário, as pessoas é que têm que respeitar o carro. Precisamos também organizar nossas cidades de forma que elas sejam regenerativas, com jardins que sejam fontes de árvores e alimentos. Além de ser urgente reduzir o lixo. No Japão não se vê lixeiras nas ruas – cada cidadão leva o lixo para casa e o separa para reciclagem. O desafio deles não é como o nosso de fazer com que as pessoas joguem lixo no lixo para depois mandar para o aterro sanitário. Temos é que acabar com os aterros. Veja o exemplo das formigas: a massa corporal delas é superior à de humanos na Terra. A quantidade de calorias que elas consomem nós só consumiríamos se fôssemos 30 bilhões (e não 7,5). No entanto, não tem lixo nos formigueiros. Nem nas florestas. Nossas cidades vão ter que funcionar como se fossem florestas. Felizmente, estamos chegando em tecnologias cada vez mais inspiradas e próximas dos processos naturais.
Quais? 
A mais conhecida é o velcro, inspirado numa planta chamada bardana [os carrapichos da planta grudavam nas calças do engenheiro suíço Georges de Mestral em suas caminhadas pela mata. Observando a planta por microscópio, viu que tinha pequenos fi lamentos terminados em ganchos e copiou a ideia na invenção do velcro]. 
Em um artigo, o senhor menciona a autoprodução e a independência como ideais de Mahatma Gandhi. De alguma forma ele inspira a economia que se quer hoje? 
Gandhi tinha um tear, inclusive, e produzia as próprias roupas. Óbvio que a inspiração gandhiana não é voltar à Idade Média, em que cada um de nós deveria viver de forma autossuficiente. O que importa é a ligação entre ética e economia. O fato de que os bens materiais são instrumentos. O desenvolvimento econômico é de natureza ética. Não é só crescimento de oferta, mas a possibilidade de que as pessoas encontrem os meios para uma vida melhor. Outro ponto importante dele é a noção de limite. É importante que a produção e o consumo tenham por base respeitar os ecossistemas, que são limitados.

Essa economia pode ser aplicada por mim e por você no nosso dia a dia. 
A mensagem de Ghandi tem que ser adaptada ao nosso tempo. O consumo que produz bem-estar para os indivíduos apoia-se em respeito e interação com a comunidade. E é fundamental que amplie as chances de o indivíduo florescer, ter saúde, informação e abertura a novas oportunidades e experiências.
Isso seria um karma melhor para a economia? 
Existe, afinal, um lado de espiritualidade nessa disciplina? Sim, seria. Tem espiritualidade, desde que dissociada de religião. Pois a espiritualidade existe independentemente de seu conteúdo ser religioso ou não. Ela nos ajuda a ter uma relação melhor com as outras pessoas, outros seres vivos e, portanto, com nós mesmos. O consumo pode ampliar nossas possibilidades espirituais, contemplativas, de interação social e de novos horizontes de cultura: isso pode ocorrer numa refeição, diante de um rio limpo, na escuta de uma bela música, na leitura de um bom livro, na conversa com um amigo ou na interação amorosa. Consumo não pode ser o avesso do que nos é mais nobre. Se for, é porque há algo muito errado com ele. 

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