Enquanto muitos apontam para o apocalipse, o filósofo e escritor Charles Eisenstein acredita na emergência de um mundo onde o senso de comunidade prevalece sobre a cisão entre os seres
Violência, intolerância, desequilíbrio ambiental, crise econômica, social e política. O mundo não vai nada bem. Como efeito colateral, a perspectiva do colapso em escala planetária cava dentro de nós o abismo da incerteza – terreno fértil para o medo. “O que será do amanhã?”, todos se perguntam. Pois há quem vislumbre nessa turbulência o raiar de tempos melhores. É por isso que o primeiro livro traduzido para o português do filósofo e escritor americano Charles Eisenstein ganhou o auspicioso título de O Mundo Mais Bonito Que Nossos Corações Sabem Ser Possível (ed. Palas Athena, R$ 52, 328 págs.). Ativista da economia da dádiva, baseada na partilha da riqueza desvinculada do crescimento econômico, Eisenstein acredita na capacidade criadora de cada indivíduo para transformar todas as esferas da atividade humana. Mas, para chegarmos a esse ponto, ele enfatiza, precisamos deixar para trás o velho paradigma calcado no individualismo e no materialismo. “O mundo que conhecemos
não está funcionando mais. Temos que urgentemente resgatar o sentido de comunidade”, ele propôs à plateia do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, onde ministrou no final de novembro a palestra Repensar o Mundo: As Transformações Econômicas, Políticas e Pessoais. BONS FLUIDOS acompanhou a passagem do pensador pelo Brasil e depois conversou com ele por Skype. A seguir, os porquês do otimismo dele.
Nesse momento de crise ecológica, social, política e econômica, a insegurança e o medo crescem entre as pessoas. Como deveríamos reagir a tudo isso que nos aflige?
Quando aquilo que conhecemos começa a desmoronar, somos incitados a sentir culpa e raiva e, mais que isso, a encontrar inimigos. É importante recusar esses convites.
Com quem quer que estejamos interagindo devemos fazer o esforço de indagar: “Como é estar na pele dessa pessoa? Como é estar na pele do meu oponente político? Qual é a história dele? Se eu estivesse no seu lugar me comportaria da mesma maneira?”. Devemos praticar esse exercício até mesmo com as pessoas que consideramos as mais malvadas. Se compreendermos isso, estaremos vivendo na realidade – na qual estamos todos interligados – e não numa projeção de separação criada por nós e que consideramos real.
Você enxerga uma transição entre um mundo em franco colapso e o nascimento de uma nova realidade. Afinal, o que exatamente estamos deixando para trás e o que estamos semeando para colher adiante?
Estamos deixando para trás o que chamo de “história da separação”: separação entre homem e natureza, entre os seres humanos, entre indivíduo e comunidade. É a
ideologia da separação que está destruindo o planeta e a sociedade, que está gerando todas as crises que enfrentamos atualmente, porque parte desse paradigma está ancorado na competição. Claro que certa dose de competitividade é natural, mas atingimos uma escala excessiva e artificial gerada pelo sistema econômico vigente que nos faz sentir apartados uns dos outros. A verdade é que essa crise não irá desaparecer tão cedo. Muito pelo contrário, ela ficará cada vez pior. Tal cenário só poderá ser transformado quando o que consideramos “normal” entrar em colapso. Daí então surgirá espaço para o novo. O mundo que conhecemos não está funcionando
mais. Temos que urgentemente resgatar o sentido de comunidade. E lembrar que a todo momento podemos fazer escolhas e decidir que futuro queremos ajudar a construir.
Por que nos sentimos tão distantes uns dos outros se a tecnologia está aí para conectar pessoas e ideias?
A tecnologia supre apenas parte da necessidade humana de conexão. E leva a alguns paradoxos. Por exemplo, quando estamos face a face com alguém, é custoso chamar essa pessoa de idiota e mandá-la para o inferno. Mas na internet as pessoas fazem isso o tempo todo justamente porque não se trata de uma conexão real. A tecnologia cumpre o importante papel de aproximar as pessoas ao redor do mundo, sem dúvida, mas, se ela se torna o único modo de contato, os indivíduos se tornam solitários, pois sua necessidade de obter outros tipos de ligação não está sendo suprida. Nos Estados Unidos, as pessoas passam a maior parte do tempo dentro de suas casas, plugadas em suas TVs, computadores e videogames, e o mundo lá fora é um mundo de estranhos, desconfortável. Mesmo a própria vizinhança. Só que em um mundo como esse não há comunidade. Seres humanos precisam sentir que são conhecidos por seus pares, e vice-versa – eis uma necessidade emocional profunda.
Quando estão na rua precisam sentir como se estivessem em sua própria casa. Temos que voltar a nos sentir íntimos das pessoas e da natureza.
Pode falar mais sobre esse resgate?
Quando toda pessoa é um estranho, e também toda árvore, toda planta, todo animal; quando obtemos tudo de longe – nossa água vem de canos; nossa comida, de fábricas distantes; nosso entretenimento e nossas amizades, da internet –, nunca nos sentimos em casa. Parece que sempre, independentemente de onde estamos,
vivemos algo fake. E a verdade é que temos uma profunda necessidade de recobrar essas conexões perdidas. O que nos foi dito sobre quem somos é que somos seres separados, indivíduos em um mundo de outros; que a nossa felicidade, o nosso bem-estar e até mesmo a nossa existência não dependem do mundo à nossa volta; que, enquanto tivermos dinheiro, segurança e controle suficientes, ficaremos bem. Mas tudo isso é uma grande mentira.
É dessa crítica que nasceu o conceito de interser?
O termo interser é mais forte do que o uso do termo interconectividade ou interdependência. Ele significa que sua existência está ligada à minha, que de alguma forma você é uma parte minha, e vice-versa. Então qualquer coisa que aconteça a você, à pessoa ao lado, à floresta tropical, aos rios e aos oceanos também estará acontecendo a mim. Não podemos escapar das consequências. Portanto, se faço algo ruim, se rompo com o círculo da vida, isso retornará para mim. Isso significa que tudo o que está acontecendo do lado de fora também está acontecendo dentro de nós. Nesse sentido podemos entender que há mensagens e revelações direcionadas a nós o tempo todo,
já que o mundo é um espelho. Um exemplo muito simples e corriqueiro: quando dizemos que fulano fala muito, isso cria uma resposta emocional em nós. “O que ela está revelando sobre mim? Será que eu falo demais ou não falo o suficiente? Será que não deixo os outros falarem?” Essa compreensão só é possível porque não estamos separados do mundo ao redor.
De que forma esse entendimento modifica nosso comportamento?
Mudam-se as percepções de egoísmo e interesse próprio, pois, se você está ciente de que seus atos de gentileza e generosidade de alguma forma voltarão para você, isso o torna mais corajoso, mais aberto. Não se trata apenas de ensinamento espiritual. É algo que nos faz sentir muito bem. Temos um confiável sistema de orientação interno que nos leva na direção de ações que irão beneficiar a outros seres e a nós mesmos. Afinal, nosso bem-estar depende do bem-estar de todos. Riqueza é se sentir seguro e em paz no mundo, e não supostamente protegido atrás de muros.
Por que você afirma ser tão importante neutralizarmos a sensação de impotência e ceticismo em relação a um futuro melhor e voltarmos a acreditar no poder dos pequenos gestos?
Na história da separação ninguém pode mudar realmente o mundo a não ser que tenha muito dinheiro e poder: governos, exércitos, mídias, corporações. De acordo com esse modo de pensar, a maioria das pessoas não tem importância. Mas esse jeito de enxergar as coisas é uma forma de separação que passa ao largo da compreensão do conceito de interser, segundo o qual toda ação é significativa, inclusive de maneiras que muitas vezes fogem à nossa compreensão racional. Logo, a sensação de impotência e o ceticismo fazem parte desse velho paradigma. Podemos achar que nossas ações são insignificantes e, portanto, desprovidas de poder para transformar o mundo. Mas, na verdade, nossas escolhas, por mais singelas que sejam, são nossas orações, nossos atestados. Um jeito de afirmar: “É esse o mundo que eu desejo para mim e para todos”. Como negar a importância de uma avó amorosa em algum lugar do mundo que está transmitindo seu afeto a seu neto e, consequentemente, ao neto
dele, e assim por diante. Daqui a 500 anos, o mundo pode ser um lugar melhor por causa dela. Quem vai ter coragem de dizer que não?
Se a mudança começa em cada um de nós, o que seria uma postura de vida capaz de nutrir um futuro desejável?
Vale muito a pena passar bastante tempo perto de pessoas realmente generosas e benevolentes. Essa é a melhor maneira de aprendermos pelo exemplo e nos contagiarmos. Por outro lado, temos que nos desvencilhar do hábito de sermos boas pessoas. Se você insistir nisso, fará apenas o mínimo necessário para se sentir como tal. E, na prática, nada será suficiente para você se sentir assim. Portanto, trata-se de uma armadilha. Em vez disso, tente criar o que é significativo e belo para você e se dedique a isso. Encontre o que você ama fazer e se coloque a serviço disso. Esse caminho se mostrará prazeroso, divertido, inspirador, enfim, o fará se sentir vivo. Estando verdadeiramente feliz, você fará muito mais pelo mundo.
Você afirma que o crescimento econômico tem um limite e que nós já atingimos esse limiar, uma vez que um planeta finito não pode suportar crescimento infinito. O que acontece agora?
Poderíamos crescer um pouco mais. O planeta ainda oferece, por exemplo,florestas tropicais que podem ser desmatadas, peixes que podem ser pescados, petróleo, ar atmosférico etc. Se trabalharmos duro, podemos crescer por mais algumas décadas. Acontece que o custo desse crescimento só aumenta. Seria melhor parar agora. Como? Protegendo os recursos. Evitando que sejam tragados por máquinas e se convertam em dinheiro facilmente consumido. Para tanto, nosso sistema econômico precisa se transformar, pois da maneira como está estabelecido ele depende do crescimento, e quando esse crescimento se desacelera ou se extingue temos grandes problemas sociais, uma vez que a riqueza fica concentrada. Em outras palavras, nosso sistema financeiro só funciona se houver crescimento, e ele faz com
que os ricos fiquem ainda mais ricos. Se a economia está crescendo, ótimo, os ricos ficam cada vez mais ricos e as demais pessoas também têm chance de melhorar sua condição de vida. Mas, se a economia está retraída e os ricos continuam ficando mais e mais ricos, sobra cada vez menos para o restante da população. É o que está acontecendo agora. Em muitos lugares do mundo a classe média já está desaparecendo. Por isso, o fim do crescimento é um alerta para que mudemos o sistema econômico.
A alternativa ao modelo vigente seria uma economia baseada na colaboração e no compartilhamento?
Sem dúvida, esse é um caminho por meio do qual todos podem ficar mais ricos mesmo ganhando menos dinheiro, mesmo possuindo menos coisas, mesmo vivendo
numa economia que está encolhendo. Nos Estados Unidos, toda casa tem um poderoso kit de ferramentas, equipamentos de ginástica etc. Agora me responda: durante
quanto tempo na semana esses proprietários se valem dessas posses? Muitas dessas coisas poderiam ser perfeitamente compartilhadas. Esse é um exemplo de como podemos nos beneficiar desse novo modelo.
Como o dinheiro se insere nesse novo contexto?
Quero deixar claro que não considero o dinheiro contrário à colaboração. Muitas pessoas já aderiram ao sistema colaborativo e também usam dinheiro. O que defendo é uma mudança na natureza da moeda. Não vamos evoluir se os bancos centrais continuarem direcionando recursos monetários àqueles que já dispõem dele. Se você possui uma quantidade significativa de recursos financeiros, seria muito mais benéfico ao planeta se você pudesse emprestá-lo a quem precisa a juro zero, em vez de guardá-lo só para você ou de transformá-lo em mais e mais cifras. Essa corrente gera gratidão. Você pode fazer a diferença na vida de amigos e conhecidos. E, quando precisar, eles estarão lá por você.
Você pode falar sobre a cultura da dádiva? Como ela se manifesta?
O Brasil está imerso na cultura da dádiva. Muito mais do que os Estados Unidos, pois cultura da dádiva é viver em comunidade, é dançar nas ruas de graça, como acontece aqui, é ajudar uns aos outros sem precisar contratar alguém para fazer isso, é consertar o banheiro do seu vizinho, que também irá ajudá-lo a consertar o seu ou estender a mão quando preciso for. Nos países desenvolvidos, as pessoas pagam por todas essas coisas. Para dançar, ouvir música, por serviços diversos, para que as crianças possam brincar, para fazer ginástica. Em suma, cultura da dádiva é doar presença, é se ajudar mutuamente.
Quais são suas expectativas para o Brasil?
Sinto que ainda dá tempo de o Brasil tomar um caminho diferente do caminho que o meu país tomou e veio prescrevendo para todas as pessoas na face da Terra, ou seja,
um grande plano com instruções sobre como se desenvolver. Talvez, 50, 40 anos atrás essas instruções fossem convincentes e, naquele tempo, os Estados Unidos estivessem cheios de confiança de que sabiam o jeito certo de não apenas ser humano como também de como se relacionar com o planeta. Pensávamos que tínhamos as respostas, mas isso não é mais verdade, porque o nosso caminho, as nossas instruções não trouxeram os resultados esperados. Segundo essas promessas, já era para
vivermos um mundo perfeito, mas, ao invés disso, estamos imersos numa realidade oposta a qualquer utopia. Os níveis de depressão no meu país estão mais altos do que nunca, assim como os de obesidade. A expectativa de vida baixou em comparação com dez anos atrás. De várias maneiras nós não cumprimos o sonho que a
ciência e a tecnologia nos ofereceram.
Nesse mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível, qual seria a maneira mais fértil de empregar o nosso tempo?
Seguir o caminho que você considera o mais bonito e que o faz se sentir vivo. Não estamos aqui apenas para sobreviver e buscar segurança, e sim para nos dedicarmos a algo que é belo e significativo aos nossos olhos. Quero encorajar as pessoas a confiarem nisso, pois quando confiamos conseguimos nos dedicar. Temos a oportunidade de fazer essa escolha, mesmo que, a princípio, ela assuste ou pareça audaciosa. Não precisa se tratar de algo heroico. Você não tem que se martirizar por não
se sentir corajoso o suficiente. Confie. Você saberá quando o momento da mudança chegar. Aí, então, será capaz de agradecer, por exemplo, ao emprego que o trouxe até aqui, mas que agora não mais fará parte da sua vida. Oportunidades aparecem no tempo certo, isto é, quando estamos preparados para elas. E tudo bem se
cometermos erros. Pois tudo isso é parte de um território desconhecido. E o único jeito de conhecê-lo é explorando-o, aprendendo com os nossos equívocos.