Entrevista com a arqueóloga carioca
O incenso inebria o homem desde a aurora do mundo, como mostra a arqueóloga carioca Fernanda de Camargo-Moro no livro As Caravanas da Lua (ed. Record), sobre a rota do olíbano e da mirra. Nesta entrevista, ela refaz o caminho das resinas pela Arábia e fala da rainha de Sabá, que governou o país dos aromas há mais de 3 mil anos. Uma viagem pelo deslumbrante universo dos sentidos.
Um aroma de figo logo na entrada do apartamento de Fernanda de Camargo-Moro, na Gávea, bairro bucólico do Rio de Janeiro, prenunciava o clima de nossa conversa: o instigante mundo dos incensos. Diretora científica da Rede Internacional de Arqueologia & Meio Ambiente e diretora geral do Projeto Rotas, criado há dez anos por um grupo internacional que pesquisa as rotas de comércio, Fernanda já morou na Índia, no Iêmen, na Palestina, em Israel, no Himalaia e no Egito para estudar os caminhos das especiarias e da seda. Da última vez, mergulhou no deserto árabe para aprender mais sobre os aromas. Durante todo esse tempo, se tornou uma orientalista apaixonada e apaixonante.
Conhece como poucos a essência desses povos, que classifica de “sensíveis”. Aos 72 anos, já realizou mais viagens ao Oriente do que a qualquer outro canto do mundo. Foram cerca de 40. Para fazer o caminho do olíbano — o incenso usado na tentativa de um diálogo com os primeiros deuses e mais tarde com um deus único —, percorreu 1 750 km nas costas de um dromedário, durante 42 dias. A familiaridade com essa parte do planeta se revela nos objetos da casa da arqueóloga. Há resinas, caixas que os antigos comerciantes usavam para guardar o dinheiro, recipientes para es peciarias, um porta-maquiagem com compartimentos para guardar além do khol, o perfume sólido (bukhur, na língua árabe), almofadas de seda, luminárias, mapas. Senti como se estivesse entrando no deserto.
BONS FLUIDOS – Por que o interesse pelos aromas do deserto?
FERNANDA DE CAMARGO-MORO – A primeira coisa que me fascinou na vida foi um vidro de perfume de minha mãe. Eu queria saber como se fazia aquele cheiro. E assim, como todas as crianças fazem comidinhas, eu fazia os perfuminhos. Morava numa chácara e um dia, lá pelos 5 anos, fui pegar um lírio-dovale e acabei caindo num riacho. Quando me tiraram, eu estava agarrada à florzinha. As pessoas falavam para soltar e depois, de tanto resistir, esmigalhei a flor e senti o cheiro na mão. Aí comecei a espremer plantas, rosas, batia com um pilão e extraía óleos perfumados. Colocava nos vidrinhos de homeopatia da minha tia juntamente com água. Mais tarde, na arqueologia, minha atenção se voltou para o comportamento das pessoas: como viviam, os perfumes que usavam, as comidas que ingeriam. Gosto de estudar o prato, os resíduos. Também sempre me impressionou encontrar vestígios de flores ao redor dos sepultamentos, desde a pré-história.
BF – Um fascínio por flores e aromas em todos os rituais?
FCM – Sim, e isso se dá especialmente no Ori ente. Nós, os ocidentais, descobrimos o perfume há pouco tempo. Não estou falando do perfume etiquetado, chique, mas do perfume de ambiente para viver bem. As pessoas de lá consideram o incenso um complemento da maior importância em sua vida. Há incenso para cada situação: saudar as estações, a Lua, o nascimento, proteger do mal. Em Áden, sul do Iêmen, as mulheres perfumam seu corpo com essas resinas após untá-lo com óleo de palma. Colocam incensários em seus armários para a fumaça se impregnar nas roupas. A casa de minha amiga iemita Layla é cheia de canela, de pedaços de casca pelos cantos. O perfume não é só para tirar o cheiro desagradável. É para dar beleza espiritual ao ambiente.
BF – No livro, a senhora fala de um encontro com uma fazedora de per fume no sul da Arábia.
FCM – Eu vi uma mulher fazendo perfume. Estava no sul do Iêmen. Ela reunia vários ingredientes na panela (benjoim, sândalo branco, olíbano e mirra) e mexia até ficar uma massa espessa. Depois, espalmava a mistura até ficar uma placa. Não sem antes passar um pouquinho de óleo de rosa nas mãos. Assim é feito o bukhur (o perfume sólido). Parte dele é vendida em pedaços, e parte é esfarelada e oferecida em latinhas.
BF – Poderia contar o passo-apasso da rota que percorreu?
FCM – A rota começa no sul da Arábia, na costa do Dophar, em Omã, fronteira com o Iêmen e onde as incensadeiras, como são conhecidas as árvores de olíbano, são peculiares. Ali há sítios arqueológicos com informações sobre produção e distribuição da resina e supõe-se que teria sido a residência da rainha de Sabá. Também há as melhores condições climáticas para o crescimento do incenso branco-azulado, o silver, denominado hujari e que entra na composição de um dos perfumes mais caros do mundo, o Amouage (significa “ondas”, em árabe, e foi criado pelo perfumista francês Guy Robert. Contêm 120 essências, como rosa, jasmim, lírio-do-vale, abricó, lima, pêssego, mirra, patchuli, sândalo, o incenso silver. Até há pouco tem po, só era encontrado em Mas cate, capital de Omã. Hoje está disponível para venda no site www.amouage.com.). Depois, o caminho segue atravessando o Hadramawt (pronuncia-se adramaut) e as altas terras do Iêmen, cortando a Arábia até chegar a Petra, na Jordânia. Dali a rota se abre: uma parte vai para o Egito e outra para o Mediterrâneo.
BF – Um turista comum pode fazer essa rota?
FCM – Parcialmente. Pode fazer o Omã todo, incluindo as regiões de Hadramawt e Sana’a, no Iêmen.
BF – A senhora percorreu a rota dos incensos e descobriu a rainha de Sabá.
FCM – Na arqueologia, me especializei em rotas. Mas eu sabia do entrosamento com a história da rainha de Sabá, também conhecida como Bîlqis, Malika e rainha d’Hazeb. As duas idéias eram gêmeas, portanto. E em todas as paradas para falar do olíbano, da mirra, a rainha aparecia. Uma coisa muito bonita é que os árabes, quando querem elogiar, chamam você de rainha de Sabá.
BF – O que mais chamou sua atenção nessas conversas sobre a rainha?
FCM – A profundidade como a personagem é vista. Que ela era exemplo de beleza, todo mundo sabia. Inclusive existem institutos de beleza Rainha de Sabá, sultanas de Sabá e afins pela Europa. Mas perceber como a rainha influencia o comportamento dos árabes foi fascinante.
BF – Como isso se revela?
FCM – A iemenita se preocupa em ampliar o conhecimento, tomar posições e se manter bonita. É uma beleza do cuidado. E a figura da rainha de Sabá inspira muito isso. A mulher oriental descrita em livros como O Livreiro de Cabul (ed. Record) não é a realidade que eu conheci. No livro Caçador de Pipas (ed. Nova Fronteira), o retrato combina mais. Essa mulher massacrada pelo homem de fato existe em alguns casos, como aqui. E o talibã é apenas um exemplo e não todo o espírito do homem oriental. Pelo menos é o que tenho visto em meus 39 anos de Oriente.
BF – Quem foi essa mulher?
FCM – Foi a rainha das caravanas de incenso. Seu país, Sabá, se dedicava à produção da resina, tão necessária ao mundo antigo. É uma rainha moreno-clara, como são os iemenitas, com cabelos pretos lisos e olhos escuros. Há historiadores que acreditam numa ascendência etíope, mas isso é porque o Iêmen invadiu a Etiópia e levou o mito para lá. Para uma mulher iemenita de hoje, ela é o símbolo da liberdade. Meu marido diz: ela é marcante sem ter sido deusa, como Afrodite, ou santa, como Maria. Nem deusa nem santa, mas uma mulher estímulo.
BF – Uma curiosidade para quem nunca esteve no mundo árabe são os mercados. A senhora os descreve com tamanho detalhamento que é possível imaginar até os cheiros. Esses aromas são caros?
FCM – Há olíbanos de diversos preços, tamanhos. Para um turista, é bem mais caro que para um árabe. As mulheres compram para fazer o seu perfume. Ele custa de 3 reais em diante. Há bukhurs caríssimos.
BF – Você viu as incisões em árvores de olíbano?
FCM – Vi. Elas choram. São lágrimas de resina colhidas em copinhos, como se faz com a borracha.
BF – Dos cheiros que sentiu, qual não sai de sua memória?
FCM – O olíbano silver. De vez em quando, pego uma pedrinha e inspiro forte para voltar para lá em imaginação. Mas há muitos outros cheiros importantes. Taez (pro nuncia-se taís) exala um aroma de rosa intenso. As regiões de Hadramawt e Dophar são puro olíbano. A parte sul de Hadramawt também é abundante em mirra. Adoro a rosa damascena, o ambargris, a tuberosa, a dama-da-noite, a manga, o figo. Até o pão quentinho. O alecrim, que é uma paixão antiga, e o gerânio à noite, que me lembra quando chegava em casa em Jerusalém. Também não esqueci os campos de tomilho da Jordânia, os manjericões do Egito. Os atares (essência sem álcool) dos mercados.
BF – Por que as resinas do sul da Arábia ficaram tão famosas?
FCM – São as mais puras. E foram levadas para Roma, que as difundiu pela Europa. Para os europeus, esses aromas vinham dos confins do mundo, ultrapassando muitos obstáculos e perigos.
BF – Em seu livro, a senhora escreve que a busca pela espiritualidade de terminou certos itinerários em direção a Meca e Jerusalém. As fumaças perfumadas sempre participaram desses momentos?
FCM – Lembra-se do que levavam os reis magos? Ouro, incenso e mirra. As culturas pré-islâmicas já usa vam o incenso e até hoje praticamente todas as religiões o empregam como um meio de enlevação espiritual. Na Igreja Católica, durante uma certa época, o incenso foi proibido porque achavam que estava ligado aos rituais pagãos. As fumaças de algum modo sempre nos ligaram ao divino. E conduzem a memória, fazem a ligação do passado com o presente.
BF – O que a Fernanda encontra quando está na estrada? Não a arqueóloga…
FCM – Tem esta frase: o homem dá um passo e o roteiro começa. É um percurso de desenvolvimento interior e enriquecimento. Mesmo entrando em lugares desconhecidos, você absorve memórias antigas, em cada ponto da estrada você sabe que o lugar testemunhou a soma de trabalhos ao longo do tempo. É uma experiência de transcendência.
BF – É por isso que a senhora descreve o deserto como uma terra de renovado encantamento?
FCM – O deserto é uma descoberta igual ao fundo do mar. É um lugar em que você olha para dentro, como num mergulho. Uma vez estava na Judéia, ajoelhei e comecei a esfarelar um pouco de areia. Aí eu vi que havia uma florzinha mínima cor-de-rosa, ao lado de uma azul, que dava um tom de lilás. Pensei se tratar de um calcário lilás, mas eram minúsculas flores. O deserto é uma coisa para olhar de perto e descobrir aos poucos.
BF – Voltando à rainha de Sabá. Ela existiu?
FCM – Estou acompanhando todos os estudos, principalmente os da Missão Francesa. Recentemente, pela primeira vez, foi descoberta uma inscrição citando um reino governado por uma mulher na mesma época e região na qual a rainha teria vivido. Quando acabo um livro, ele não morre. Continua vivo. Fico com saudade dos personagens, que são reais.
BF – Já está com saudade dos povos do Oriente, que chama de sensíveis?
FCM – Assim que concluir um novo livro sobre o golfo Pérsico, estarei de volta.