Lorena Comparato se deu conta de que havia sofrido assédio sexual de um membro da família durante sua juventude, durante a pandemia, pouco antes de gravar a nova série do Star+, Não Foi Minha Culpa — sobre feminicídio e assédio. “Passava a mão em mim e pedia para ver meu corpo. Eu não sabia que isso era assédio porque vinha mascarado como carinho”, recorda ela, em entrevista exclusiva a Marie Claire.
A conversa por videochamada, na qual a atriz faz esta revelação, só acontece depois de anos de sessões de terapia para lidar com os traumas deixados por esse e outros tipos de violência de gênero, nos quais foi submetida. Entretanto, o desabafo não foi nada fácil para Lorena. “Eu começo a tremer, meu coração bate forte. Parece que estou cometendo um crime de falar isso para você”, diz ela.
E não é por menos. De acordo com Luciana Temer, advogada e diretora do Instituto Liberta, “o abuso sexual é o único crime que a vítima sente vergonha de ter sofrido”. E no Brasil o número de mulheres que sofrem abuso é altíssimo. Uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha e com apoio da Uber, mostra que uma em cada quatro brasileiras acima de 16 anos sofreu algum tipo de violência ao longo dos últimos 12 meses no país, o que representa um universo de aproximadamente 17 milhões de mulheres vítimas de violência física, psicológica ou sexual no último ano.
Na entrevista a seguir, Lorena Comparato fala da importância de uma série com essa temática na televisão, diz que é uma sobrevivente do assédio [de diversos tipos] e conta que, por causa dos episódios que já viveu, seu corpo tem sequelas. “Volta e meia vem uma forma de carinho que eu penso: ‘É assédio ou é carinho? Não, calma, é carinho'”. E, por fim, admite que corrigir assediadores para tentar mudar o mundo, a demanda uma força absurda. “Meu natural é ficar em silêncio, gelar”.
‘Não foi minha culpa’
“Esta série [escrita por Juliana Rosenthal e Michelle Ferreira com estreia prevista para agosto] é muito especial para mim em todos os sentidos. Faço parte de um grupo que se chama Companhia de Quatro Mulheres, que há 10 anos cria peças para teatro, audiovisual, podcasts. E um dos assuntos que a gente mais queria falar era sobre o feminicídio, como forma de denúncia, de revolta. Tínhamos, inclusive, um projeto chamado Feminicídio. Até que descobri que a Star+ ia produzir uma série com essa temática. Aí pensei: ‘Preciso fazer essa série!’.
Ela fala de vários casos de feminicídio, alguns baseados em grandes casos midiáticos, outros não. Mas são histórias de mulheres diversas, que tiveram suas vidas retiradas pelo simples fato de serem mulheres. Ouso dizer que hoje em dia ainda é difícil de muita gente aceitar que feminicídio existe. A gente vê todo dia no jornal uma menina estuprada, alguém que morreu esfaqueada, incendiada, enterrada. É sempre a namorada, irmã mais velha, enteada. Quem não aceita que o feminicídio existe está sendo ignorante.”
Emoção em cena
“São dez episódios separados, de dez histórias de mulheres completamente diferentes: de idade, classe social, etnia. Para a gente ver que diferentes mulheres sofrem violência. Foi uma série muito difícil de fazer, mas ao mesmo tempo muito acolhedora. Porque foi feita majoritariamente por mulheres, e isso não é normal nem em Hollywood. Um set de filmagem é sempre muito masculino. Então, a estrutura da série não era machista.
Tinham momentos em que a gente parava uma cena difícil, e se emocionava, todo mundo chorava. Foi uma série catártica. Pra gente também honrar todas as vítimas do feminicídio e as sobreviventes.”
Assédio dentro da família
“Somos todas sobreviventes do assédio. É muito difícil ter uma mulher que nunca sofreu assédio. E quem disser que nunca sofreu, pode começar a investigar que vai ver que muita coisa que viveu era assédio, sim. Eu faço terapia justamente para viver com essas dores e conseguir falar sobre o assunto. E acho importante dizer que o assédio, a violência, não acontece só na rua. Acontece em ambiente familiar, dentro de casa.
Eu já tive experiências assim na minha vida, não foram legais. Você acha que a sua família é um lugar que você pode ter muita confiança. E eu, hoje em dia, sou muito desconfiada com tudo por causa disso. Porque já sofri assédio sexual dentro da minha família. É muito complicado falar disso, porque era uma coisa que eu não sabia que era assédio. Eu nunca falei disso antes [Lorena faz uma pausa].
O que eu vivi foi uma pessoa que, durante muitos anos da minha vida, começou muito jovem, sempre passou a mão em mim. Passava a mão, pedia para ver meu corpo. Eu não sabia que isso era assédio, nunca soube. Era mascarado como carinho, mesmo eu não gostando e dizendo não. Foi há pouco tempo, durante a pandemia, que essa ficha caiu. E quem me ajudou muito foram as minhas amigas.
Eu começo a tremer, meu coração está batendo forte, parece que eu estou cometendo um crime de falar isso para você. E eu não estou cometendo um crime. Eu faço um tratamento há muitos anos já, tive várias tipos de terapias, que me fizeram chegar agora e conseguir falar [sobre o assunto].”
Vida contaminada
“Eu escolhi me distanciar [do familiar que a assediou] porque é melhor para mim. Eu acho que os agressores, em geral, não têm ideia de como isso contamina sua vida. Muitas coisas da minha vida foram contaminadas, inclusive a minha vida sexual. Estou em tratamento intenso para não permitir que isso aconteça, que invada minha vida de uma forma tão nefasta. Virou quase que minha meta ser feliz, passar por cima disso.
Não quero viver num lugar de vítima que a sociedade insiste em nos colocar. De frágil, coitadinha. Eu quero ser sobrevivente, eu quero falar desse assunto. Mas também acho uma dificuldade falar contra uma pessoa da sua família. Um homem mais velho. Ou você falar contra um diretor, um produtor. Seu pai, seu padrasto. De uma figura mais poderosa. Porque em muitos lugares, crianças, adolescentes e jovens denunciam esse tipo de assédio e as pessoas em volta não acreditam, ficam na dúvida. Acham que a criança está mentindo, que aquilo foi uma brincadeira.
Meus pais sabem [do ocorrido]. Minha mãe sabe bastante, meu pai sabe também mas não dos detalhes. Foi muito difícil para eles.”
Sobrevivente
“Eu sou sobrevivente de assédio. De assédio moral, sexual, psicológico. De vários tipos diferentes. Hoje em dia, me sinto sentinela de assédio. Se vem uma pessoa querida, minha amiga, muito amável, que faz uma brincadeira [que ela acha que é brincadeira e não é], que me invade, que não dei autorização, eu levanto e falo: ‘Isso é assédio!’.
Mas para fazer isso, preciso de uma força absurda, porque o meu natural é ficar em silêncio, gelar, não saber o que fazer e não falar nada. Mas estou cansada de ficar desse jeito. A verdade é que, pensando e repensando os assédios que já sofri, a maioria deles eu disse ‘não’, disse que não era certo, que não queria, mas não fui escutada. Tem gente que se retrai, não anda mais na rua com certas roupas, não faz certas coisas porque acha que dessa forma vai se proteger do assédio. Eu entendi muito cedo que não há formas de me proteger.
O ideal é ter muita educação pra gente aprender a falar sobre o assunto, para a gente não sucumbir a dor que é você ser sobrevivente ou vítima de assédio. Mas o que acho mais importante de tudo é a educação masculina. A nossa sociedade é tão machista, tão patriarcal, que os homens, principalmente brancos, são criados num lugar acima da lei, onde eles podem fazer tudo porque nada vai acontecer.”
Sequelas psicológicas
“A série ‘Não foi minha culpa’ veio como uma catarse sobre esse caso na minha vida, sobre caso de pessoas que eu me relacionei amorosamente e me tratavam muito mal. E aí já vem o assédio psicológico, moral. Como é tudo misturado com amor, seja o amor da família o afeto do ente querido, o amor do parceiro ou da parceira –relacionamentos tóxicos podem vir de qualquer pessoa.
Meu corpo tem sequelas. Volta e meia vem uma forma de carinho que eu penso: ‘É assédio ou é carinho? Não, calma, é carinho’. É muito difícil. O meu episódio na série [Lorena vive a personagem Priscila, que fica em casa durante a pandemia com o namorado abusivo, Fernando, interpretado por Armando Babaioff], por exemplo, mostra que a violência não precisa ser um tapa na cara, ela não é um chute na barriga. Ele mostra que a violência é uma coisa meio transparente, é uma xingada aqui, uma grosseria ali, e daqui a pouco esse brother tá te batendo. E você não vê acontecendo porque tem muito amor, tem afeto tem carinho.”
Gatilhos
“Nos últimos anos me tornei uma pessoa em carne viva. Qualquer coisa me dá gatilho. Um amigo meu que me chama de gostosa, uma conotação um pouquinho pior, já me cutuca, já me faz lembrar de muitas coisas. Começo a me questionar o que eu fiz para esse homem achar que pode falar isso de mim. Aí eu já fico incomodada, choro em casa sozinha. E eu passei a entender que eu não quero mais fazer isso. Então, eu tenho que conversar. Explico que isso não é legal, que não fez eu me sentir bem. Espero mudar o mundo desta forma.”