Dois livros recém-lançados mergulham em histórias reais de animais e mostram como eles podem transformar a vida das pessoas
Amante de pássaros e da falcoaria desde a infância, a escritora inglesa Helen Macdonald decidiu comprar e treinar um açor – temida ave de rapina – quando estava tomada por uma depressão após a morte de seu pai. Foi assim que em 2007 viajou até a Escócia para buscar Mabel, uma companheira de luto nada convencional.
Criar uma relação de confiança com a ave não era exatamente um consolo para a tristeza, mas uma fuga dela. “Logo percebi que não poderia domesticar esse luto. Pensei, então, que poderia domar um falcão”, relatou Helen durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano. A busca da autora por superação e sentido ao lado de uma criatura selvagem deu origem ao livro F de Falcão, um sensível best-seller internacional recém-lançado no Brasil pela Intrínseca.
Helen, que não matava nem uma mosca, de repente se viu em contato com o instinto do animal e sua caça. Levava Mabel para capturar coelhos e, à medida que mais entrava nesse contato direto com a natureza, mais distanciava-se das dores humanas da alma. O tempo em que ficou isolada treinando o falcão, ela conta, a fez olhar para o mundo de forma a observá-lo em toda a sua beleza, crueldade também, mas, principalmente, sem espaço para lamentos e outras emoções. Até um ponto em que se sentiu pronta para retomar a própria “vida”.
A reconstrução e o autoconhecimento tratados de forma profunda e literata pela inglesa também são estimulados na convivência com outros animais – menos selvagens – no nosso dia a dia. Os vínculos criados com nossos pets possibilitam fugas momentâneas de problemas e estresse. Ao correr no parque com o cachorro, estamos sendo mais instinto e deixando para trás angústias. Ao rolar no chão com o gato estamos deixando para trás a preocupação com o horário ou o trabalho.
Para Maria Esther Maciel, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do retrato de animais na literatura, somos contagiados por alguns aspectos dessa troca afetiva com os bichos. Emprestamos nossas características para eles e ficamos mais “animalizados” também. “São mundos cheios de porosidade”, diz ela, dona da cadela Lalinha.
Enquanto Helen deixa o falcão Mabel narrar parte da história, o jornalista Roberto Kaz, por sua vez, dá voz a outros animais na sua coletânea de reportagens (O Livro dos Bichos, Companhia das Letras). Traz o perfil de um touro reprodutor, de um camundongo que foi ao espaço, e, entre outros, do macaco Tião, famoso por ter sido candidato à eleição para prefeito no Rio de Janeiro de 1988. A obra permite um singular exercício empático: pensar sobre a fome, vontade e sofrimento de um bicho muda algo em nós.
De forma parecida, pode-se dizer que não é preciso adestrar um falcão para reinventar-se. Mas conhecer a experiência de alguém que passou por isso pode ser um revigorante começo. Aí está o curioso desses dois livros: neles, os animais representam o elo com uma realidade bruta que nos ajuda a dilatar a compreensão das coisas.