Noruega, Suécia e Dinamarca estão entre os países mais felizes do mundo. Por muitas qualidades. Mas uma delas, especialmente, ajuda a explicar todas as outras
A região chamada Escandinávia ocupa o norte da Europa e compreende cinco países: Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia. Pela localização geográfica, o frio é, digamos, polar. Os dias, curtos. Em grande parte do ano o Sol se levanta às 8h e se põe às 15h. Totalmente entrecortadas e polvilhadas de ilhas, fica fácil entender por que as terras do norte acabaram gerando aventureiros que romperam os mares em busca de outros paradeiros. Em seus barcos de casco esguio e velas quadradas e movidos a remo, os vikings partiram rumo à Inglaterra, costa da Europa, Canadá. Isso entre 800 e 1050 d.C. Coragem, força e determinação são características antigas por lá.
Justamente nesse lugar de recursos naturais desafiadores desabrocha uma cultura admirável. A natureza, a segurança, o transporte que funciona e o tempo do relógio que não oprime são camadas de um bem viver inquestionável. E que descansam mente e espírito. Percebi essas sensações devagar, durante as três semanas que passei por lá. Despida do estado
de alerta (por conta da violência ou do trânsito) e da pressa, e cercada por diferentes tipos de beleza, respirei os ares de um relaxamento profundo.
Encantam as cidades bem cuidadas. Nas capitais Oslo, na Noruega, Estocolmo, na Suécia, e Copenhague, na Dinamarca, o verde é onipresente. Basta andar pelas ruas arborizadas, praças e parques para a atmosfera bucólica refrescar primeiro os olhos. Antes mesmo de a sustentabilidade ter esse destaque no mundo, os vikings já faziam telhado verde, por
exemplo. Plantavam grama, flores e até pequenas árvores no teto das casas, como comprova uma visita ao Museu do Folclore na capital norueguesa. Ali, um conjunto de casas da Idade Média oferece uma viagem no tempo e na história.
Nos dias mais quentes do verão, parece ainda que todos os jardineiros entram em ação para embelezar a urbe. Veem-se floreiras brotarem da noite para o dia nas avenidas,
lojas, portas e janelas das casas. Homens e mulheres passam com suas sacolas de peônias, gerânios, lavandas como se fossem o pão quente do dia.
Os barcos atracados praticamente na porta de casa (estamos falando de cidades portuárias) lembram o apreço ao mar. Em Oslo e especialmente em Bergen (também na Noruega), gargantas de mar penetram pelo continente ladeadas por altivas montanhas (os incomparáveis fiordes). Entre flores e fiordes, ia me sentindo renovada embalada pelo trio respire, observe, absorva.
E tudo sem pressa, para ter mais tempo. A menos que seja por esporte, para que correr? Os carros não parecem competir para serem os primeiros a chegar ao destino. Podem esperar uns aos outros e, principalmente, o pedestre. Algo que uma paulista estranha. Quantas vezes atravessei ruas sem precisar apenas porque fiquei constrangida com a gentileza do motorista! Explico: eu parava numa esquina para checar por onde gostaria de seguir e o motorista imediatamente desacelerava e parava para que eu passasse com segurança (nem é preciso dizer que de volta a São Paulo, já no primeiro dia, me dei conta de como nossos motoristas são de outra categoria).
Uma outra história ajuda a ilustrar o pensamento em voga em terras nórdicas. É de um sueco que trabalha numa montadora de veículos: “Se chego mais cedo, estaciono na vaga mais distante. Deixo as mais próximas da entrada da empresa para quem chegar depois e, provavelmente, em cima da hora”, disse o senhor.
Seria isso um senso elevado de preocupação com o coletivo? Apenas pensando… Tempo. Na fila por uma informação, ninguém atrás fica batendo o pé como se assim pudesse “agilizar o processo”. Se você ainda está lá é porque precisa estar. E, em respeito a isso, ninguém se estende para além do necessário. Cada um é responsável por usar bem o tempo – o próprio e o dos outros. Dá uma pontinha de inveja perceber que os escandinavos não se atropelam nem quando lutam por mais tempo. Querem, sim, mais licenças para ficar junto com a família, para o lazer e para manter um equilíbrio saudável entre vida pessoal e trabalho.
Um exemplo: no verão, tudo fecha às 17h ou 18h apesar de o Sol ainda brilhar forte até as 22h, às vezes até 23h. Quanto as lojas poderiam vender aos turistas nesses entardeceres prolongados? E os museus, quanto poderiam faturar? Souvenires? Nada disso. Bateu o horário, os funcionários podem pegar o bonde, o metrô, o ônibus, a bike e ir ao parque, ao
cinema, pra casa.
A inglesa Helen Russell, que se mudou com o marido para Jutlândia, cidade dinamarquesa que é o quartel-general da Lego, destaca, entre as muitas coisas interessantes do seu livro O Segredo da Dinamarca (ed. Leya), algo quase assustador para nós brasileiros: “As mais recentes estatísticas mostram que os dinamarqueses só trabalham 34 horas por semana (os
ingleses trabalham 42,7 horas)”. Nem por isso o país é menos competitivo. Muitíssimo ao contrário. Está em terceiro lugar no estudo sobre a produtividade dos trabalhadores da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
Sim, infelizmente, há questões que começam a macular esse equilíbrio. Ao que parece, smartphones e trabalho remoto estão fazendo as pessoas trabalharem quando deveriam estar descansando. A chegada de estrangeiros com sangue nos olhos e faca nos dentes, já mais acostumados a um ritmo acelerado, também tem concorrido com os empregos dos
dinamarqueses e, ao fim, começa a crescer o número de pessoas que adoecem por conta dessa competição. Mas o país está ciente disso, e não dando as costas a isso. Prova é o aktiveringsydelse, uma ajuda financeira concedida a pessoas que foram forçadas a sair de seus empregos por questões de saúde, o que incluiria diagnóstico de estresse. O auxílio é para garantir que a pessoa possa investir em outra carreira para se reinserir no mercado de trabalho. Outra pontinha de inveja.
Então a gente entende por que paga caro para viajar por esses países onde um café ou uma água chegam a custar R$ 15. Há muito imposto embutido. Mas tudo retorna em segurança, educação de qualidade, hospitais e atendimento de saúde, transporte, dignidade. Não existe, obviamente, civilização perfeita – e até a Noruega, eleita o país mais feliz do mundo em 2017, tem suas mazelas para lidar –, mas, quando essas questões básicas da sobrevivência estão garantidas, convenhamos, o dia começa noutro patamar.
Felicidade se compra? O relatório das Nações Unidas sobre a felicidade no mundo mede esse índice levando em conta o valor do PIB per capita, a expectativa de vida, a ausência de corrupção, a percepção de poder contar com a seguridade social, a liberdade para fazer escolhas e o fato de estar numa cultura de generosidade. Há tudo isso nesses países do norte.
E os nórdicos não acreditam que comprar mais coisas os faça mais felizes. Até porque o valor de imposto para um carro ou uma casa maior é muito alto e às vezes não compensa. Quem pode prefere ter um barco, que permite navegar. Esporte para todos é um dos lemas por ali – porque ser ativo e sair de casa contribui para a felicidade. Sem contar que o exercício moderado diminui o risco de depressão e melhora o desempenho cognitivo.
A quantidade de bicicletas nas ruas é outra prova de que o empenho nesse sentido é grande. Em Copenhague uma em cada três pessoas se locomove de bike. A prefeitura de Oslo determinou que até 2019 os carros estejam banidos da circulação no centro da cidade, razão pela qual está construindo 60 quilômetros de ciclovias. E tudo é tão plano que convida mesmo a pôr a magrela para rodar. Fiquei pensando que é uma ótima maneira de queimar todas as calorias dos smørrebrød (aqueles sanduíches com pão preto, salmão defumado ou arenque, ovos e deliciosas maioneses). No inverno, deve ser a vez das academias! Algo há de haver para os escandinavos manterem-se com o porte físico tão atlético-bonito-saudável.
O impacto emocional da arquitetura, da arte e do design E como não se sentir bem cercado por arte (há mais de 30 museus em Oslo para ter uma ideia), arquitetura e design impecável?
É de imaginar que onde o frio castiga a maior parte do ano ficar em casa tem que ser gostoso. E os amigos dos países gelados se esmeraram nisso. As expressões “ficar kos”, em norueguês, ou “ficar hygge”, em dinamarquês, que o digam. Ambas significam a mesma coisa: ficar confortável em casa. Para isso, alguns macetes. A decoração chega de mansinho com seus materiais naturais como couro e madeira, cobertores e mantas nos sofás, muitas almofadas (quando não se pode comprar móveis, uma almofada faz qualquer cantinho mais
aconchegante). Do passeio escandinavo, voltei também com a decisão veemente de ter muitas luminárias em casa. A luz indireta pacifica qualquer cantinho.
Aprendi ainda que a ideia de ter peças de design não passa pela cabeça dos nórdicos. Já está no DNA deles. “Se o ambiente em que vivemos é bonito, nos sentimos confortáveis e seguros. E isso nos deixa mais felizes”, diz a dinamarquesa Charlotte Ravnholt, da Bo Bedre, revista de decoração da Dinamarca, sobre a influência do design no humor. A casa é como um abraço. Você entra e quer se jogar nela. E isso descansa profundamente.
Sociedade igualitária Por último, impossível não admirar o espírito de igualdade vigente. A começar pela acessibilidade que permite aos deficientes físicos circular com independência pelas ruas e pelos museus, parques, restaurantes. Os salários também são equânimes entre homens e mulheres. A licença-maternidade, de 480 dias, na Suécia, pode ser dividida igualmente entre os pais. E há um detalhe que parece pequeno, mas sinaliza como a Escandinávia deve ser um bom lugar para ser mulher: nenhum desagradável assovio enquanto andamos por onde quer que seja, vestindo o que for.
Em Estocolmo, num dos museus mais geniais que já conheci – O Vasa – várias dessas características ficam expostas. O Vasa é o nome de um navio resgatado em 1956 do fundo do mar depois de 333 anos de seu naufrágio. O museu, além de contar a garra e perseverança dos suecos para fazer o resgate, mostra uma postura interessante dessa cultura. Junto com todo o material de pesquisa do navio, restos mortais da tripulação, roupas, objetos etc., os estudiosos descobriram que o papel da mulher foi subnotificado. E estão fazendo uma revisão dos documentos descobertos para corrigir a história.
Pode-se escrever muitas teses sobre por que a Escandinávia é tão especial. Pode-se dizer que fazer um país de 5 milhões de habitantes (Dinamarca e Noruega têm em torno disso, enquanto a Suécia tem 9 milhões) funcionar tão bem é uma coisa, fazer um país de 206 milhões de pessoas (o Brasil) respeitar as mesmas leis é outra. Também acho difícil. Mas será que é a quantidade que distorce tudo?
Mais do que qualquer coisa, em um lugar em que as pessoas se sentem iguais, ninguém precisa tirar nada de ninguém. Um pode confiar no outro, ser gentil, respeitar o ritmo e a necessidade alheia sem que isso represente um prejuízo para si. Aí parece estar o segredo do bem-estar nórdico. Trata-se de um pilar chamado respeito. Dele saem todos os outros. Planejamento, equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, saúde, solidariedade, liberdade de escolha e de criação. Quando visitamos as terras vikings é isso que gostaríamos de trazer aos quilos na mala. Mesmo que a ficha só caia dias depois da volta. Até logo, Escandinávia. Muito obrigada. Ou, como sua brava gente diz: Hade Bra (radebrá). Takk, takk (taque, taque).