Na era das notícias veiculadas pela internet, uma palavra começou a chamar a atenção: pós-verdade. Conversamos com o historiador Leandro Karnal para esmiuçar o conceito e compreender melhor o que a propagação dele diz sobre o comportamento humano
Para explicar os verbetes, os dicionários costumam agregar uma frase ilustrativa. No que se refere à pós-verdade, o britânico Oxford diz: “Nesta era da pós-verdade, é fácil selecionar os dados a dedo e chegar a qualquer conclusão que se queira chegar”. Selecionar a dedo foi tradução livre de “cherry-pick” ou “catar cerejas”. Em tradução ainda mais livre, penso em jabuticabas. Seria algo como pinçar a informação que me interessa, deduzir coisas – que o suco de jabuticaba faz bem ao coração, por exemplo
– e compartilhar o que me parece verdade. Checar o dado é o de menos. Desde 2004 o Oxford eleje uma palavra que represente o ano em questão. Tivemos o Sudoku e o selfie. Em 2016 foi a vez da pós-verdade: “Relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais”. O contexto era o resultado surpreendente das urnas no Brexit e na eleição americana. Mas a palavra vazou para o nosso cotidiano, de
um jeito que já não sabemos seu significado. Para Leandro Karnal, professor da Unicamp, ela tem mais a ver com o receptor das informações e sua porção Narciso, como esse autor de cinco livros (entre eles, A Detração) e coautor de outros (entre eles, Verdades e M Mentiras) destrincha a seguir. Karnal dá pistas de como chegar à essência das coisas. Uma delas é ter liberdade para pensar o oposto do que pensa a tribo. Mas há outras cerejas (ou jabuticabas) do bolo. Você escolhe.
Muitos dizem que a verdade não existe, o que existe são pontos de vista. O que há por trás disso?
No momento em que você diz “Não existe verdade”, está adotando uma postura cética radical, cujo nome é pirronismo [doutrina fundada pelo filósofo grego Pirro de Élida e que consiste no hábito de duvidar de tudo]. De fato, muitas das questões das verdades têm critérios subjetivos, como beleza, gosto culinário, orientação sexual. Ou seja, dependem do sujeito. Porém, se você colocar sete rapazes juntos – dois que acreditam na verdade, três que não acreditam, dois que acham que é uma questão
de gosto – e queimá-los com água fervente, todos vão reagir com dor. Logo, há questões que não dependem apenas da subjetividade. Cada um vai poder descrever a dor com um vocabulário, com um grito específico, mas todos irão sofrer. Qualquer ser humano deixado duas horas debaixo d’água, nas profundezas, vai morrer.
Ninguém é imortal. Então alguns dados biológicos e físicos estão mais próximos da objetividade. Mas, quando alguém diz: “Não existe verdade, por isso eu posso divulgar o que eu quero”, está escondendo outra coisa mais problemática, que é a instrumentalização das notícias. Eu não tolero o candidato A, então espalho que é um monstro, um estuprador, um pedófilo. Sei que isso é falso, mas estou acreditando em duas verdades. Primeiro, que o candidato por quem torço sairá favorecido por isso. Em segundo lugar, um objetivo claro e racional, quero atacar uma posição política. Então o que as pessoas estão chamando de “pós-verdade” é uma questão importante.
A pós-verdade seria uma mentira com outro nome?
É preciso fazer uma distinção: nem tudo é pós-verdade. Quando Donald Trump, na campanha, disse que o Obama não nasceu nos Estados Unidos, ele sabia que era mentira. Isso não tem nada a ver com pós-verdade. Ele estava tentando impor uma versão dele, desmentida por documento. Quando o secretário de imprensa da Casa Branca afirmou que a posse de Trump tinha sido a mais concorrida da história dos EUA, foi confrontado com as fotos, onde se vê que aquela posse foi das menos concorridas. Aqui não se trata de pós-verdade, aqui estamos no campo da mentira, que é a instrumentalização política da verdade. Isso é mais velho do que a pomada Minâncora. Isso é um clássico.
Que outras mentiras foram um clássico?
Quando César, ao se divorciar da sua segunda esposa em função da presença de um homem numa festa, diz que a mulher de César tem também que parecer honesta, está
preocupado não com sua mulher ser ou não honesta, mas com o impacto político dessa ideia. Discutir onde nasceu o famoso jornalista Samuel Wainer, se na Bessarábia ou no Brasil, era fundamental porque Getúlio Vargas deu a ele condições de criar um jornal para combater Carlos Lacerda – e a lei brasileira até hoje proíbe estrangeiros de terem a posse de meios de comunicação. O que se chama hoje de pós-verdade tem de ter certo cuidado. Mentira é mentira, verdade é verdade. E tudo isso
continua sendo como sempre foi.
O que é pós-verdade então?
Quem tem um site de fake news [notícias falsas] trabalha com a mentira. Há pessoas especializadas nisso, é um serviço hoje. De alguma forma funciona como as clássicas claques contratadas para aplaudir ou vaiar. Só que essa pessoa que cria a falsidade não está trabalhando com a pós-verdade. A pós-verdade está no
receptor, que dilui a autoridade, que recorre ao único critério da emoção, que repassa a informação acreditando ser verdadeiro, o que torna o narciso subjetivo o grande critério contemporâneo da verdade.
Poderia explicar melhor o narciso subjetivo?
Vou lhe dar um exemplo: Steve Jobs tinha um câncer grave, mas curável. Steve Jobs era um empreendedor. Disse para ele mesmo: “Todo mundo apela à quimioterapia, mas eu sou original, eu sou único, eu sou especial, eu sempre dei respostas fora do padrão”. Foi tomar suco de tomate integral e orgânico, foi fazer
meditação. Quando descobriu que todo mundo vai para a quimioterapia porque provavelmente ela é mais eficaz, já era tarde para ele.
Houve prepotência?
É, e isso às vezes é repetido pelas pessoas porque não há mais o validador. Todos os médicos estão dizendo que a pílula milagrosa do câncer não foi testada de modo a se poder concluir qualquer coisa sobre ela. Mas a crença do desespero de quem sofre uma doença grave é tamanha que a pessoa entra com ação judicial porque estão negando a ela viver. É uma convicção narcísica. Quando alguém me diz: “Os médicos não sabem nada”, concordo em parte. É claro que os médicos erram, que não
sabem tudo. No entanto, acrescento: “Os médicos sabem muito pouco, mas, no campo da saúde humana, sabem mais do que eu”. Eles têm, matematicamente, mais chance de acertar. Estou tentando restaurar o critério de validação da verdade.
Como descobrir uma fonte fidedigna?
Há um ditado latino que diz: “Roma locuta, causa finita”. Roma falou, o caso está encerrado. Hoje não é mais assim. Quebrou-se a autoridade da verdade definida pela Igreja, pelos intelectuais, pelos jornais. A partir do chamado mundo líquido [teoria defendida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman segundo a qual vivemos em uma época de dissolução das tradições], não temos mais uma fonte da verdade. A verdade ficou múltipla. Quem elabora, por exemplo, as referências culturais da maioria das
pessoas? A Wikipédia, que é editada por qualquer pessoa no planeta Terra.
A Wikipédia ameaça tirar do ar fontes não confiáveis.
Sim, mas uma pessoa pode acessar uma Wikipédia que talvez não tenha nenhuma qualificação. Ela a aceita como verdade e a usa num debate, por exemplo, porque acredita no que leu. Não está arquitetando uma estratégia: “Vou mentir”. Está acreditando numa fonte que, como toda fonte, tem de ser problematizada, checada. Mas
a pessoa deixou de problematizar. Como temos hoje publicados todos os estudos, basta acessar a internet sobre qualquer tema – de “Ovo faz mal?” a “Correr é bom?” – e você vai encontrar dez posições totalmente contrárias. Mas a verdade continua existindo, mesmo que eu não tenha consciência dela.
Por que se deixou de problematizar?
Além de as fontes terem quebrado o critério de autoridade balizadora, temos a rapidez da informação, tanto que o ato perde o emissário e só tem receptor. Não se sabe nem mais quem é o autor daquilo. A partir disso cria-se uma imagem, e a imagem vai voar numa velocidade enorme.
Como explicar o sucesso dos documentários? Aliás, o nome do principal festival de documentários do Brasil é: É Tudo Verdade.
O documentário é uma reorganização da ficção com outro critério que não o do cinema-arte. Quando faço um documentário, estou pressupondo que aquilo é mais real do que o filme. No teatro, a gente chama de signo de signo quando você coloca uma peça dentro da peça, como é o caso de Hamlet. Fazendo isso, você concentrou a ficção na peça e a outra peça maior, que é o Hamlet, se torna mais real. Quando mostro fotos, entendo que aquilo é uma descrição objetiva do real, mas toda foto é tão
subjetiva quanto um quadro a óleo porque quem escolhe o ângulo e a cena, quem escolhe o enquadramento é sempre o fotógrafo. De fato, a verdade tem graus de subjetividade grandes. Nesse caso, tenho que fazer a pergunta fundamental: “Cui bono?” – A quem interessa? A quem interessa ter dito isso? Por que diz?
E por que não se faz essa pergunta?
Estamos numa fase em que a concentração equivale à de um pintassilgo. A pessoa olha uma notícia e repassa. Daqui a duas horas, ela nem sabe mais que “meme” foi aquele, que notícia foi aquela. Ninguém analisa textos, ninguém tem o menor interesse em verificar fontes, ninguém tem a mais vaga noção de trabalhar com a ideia de que as coisas têm de ser examinadas. Somos muito preguiçosos na maneira de não ler, de repassar, de não examinar. Sinto que a inteligência não mudou. Meus alunos
são tão inteligentes quanto há 30 anos. Mas mudou o padrão da paciência para enfrentar um texto difícil, um texto que contradiga o que eu penso e que me faça redarguir. Simplesmente a adjetivação é muito mais forte que qualquer outra coisa. Hoje, é a vitória do adjetivo e a morte do substantivo.
Checar a verdade dá trabalho.
Dá trabalho. E tem também outro motivo que analisei no livro A Detração: quando espalho uma notícia negativa sobre alguém, necessariamente estou me elogiando.
Quando eu digo que você é agressiva, analfabeta, necessariamente estou dizendo que não o sou. Por isso estou criticando você. Uma fofoca é sempre uma tentativa de estabelecer uma aliança, a exclusão de alguém e a exaltação do autor.
Acreditamos no que queremos?
No senso comum, achamos agradável aquilo em que acreditamos. Quando publiquei uma coluna no Estadão sobre ser conservador, sem fazer julgamento, alguém disse:
“Finalmente, um texto bom”. Quer dizer, finalmente essa pessoa acha que passei a pensar como ela, ou pelo menos foi o que lhe pareceu. Logo, o texto é bom. Agora, o pensamento científico tenta afastar o sujeito da percepção e observar as contradições. A ciência é boa na medida em que se reconhece falível. Uma das coisas
que distinguem a ciência da religião é que a religião trabalha com certezas e dogmas, e a ciência trabalha com números e erros.
Números não mentem?
Os números são uma convenção. Pense o seguinte: sociedades como a maia e a hindu conceberam o zero. Outras sociedades não tinham símbolo para o conjunto vazio. De qualquer forma, todo número é uma abstração, você nunca vai encontrar o 3 andando na rua. Quando trato de coisas que não existem, posso ser objetivo. Quando falo de coisas que existem, como o comportamento humano, é mais difícil fazer regras.
Como, diante de uma situação, você se distancia para tentar ver a verdade?
O distanciamento é um procedimento científico e filosófico para pensar, é a maneira de conseguir certa isenção. Se você estiver diluído no processo, raramente conseguirá pensar algo objetivo. A decisão de olhar por outros ângulos é sempre importante. Essa é a chave das grandes transformações científicas da história. Uma maneira de nos distanciarmos é dada pela própria morte, porque a ciência cresce de enterro em enterro. À medida que seus proponentes falecem, os jovens, com outra formação, podem vir com outras ideias. Isso é fundamental para que a ciência tenha outro paradigma. No momento em que saímos de um grupo, deixamos de pensar com o chamado ídolo da tribo, que são essas crenças coletivas que as pessoas ficam reproduzindo apesar das contradições. É difícil pensar fora da tribo. Quando
uma ideia me choca, é provável que ali esteja contido um medo meu. E nessa forma cabe refletir se não está ali a verdade ou, pelo menos, uma necessidade de aprofundamento dos critérios da minha convicção. Afastar-se é um critério. Outro é ter liberdade para pensar o oposto.
Não estamos nos dando essa liberdade? Ou não vivemos num universo favorável a isso?
Acho que, em nome da liberdade e da individualidade, estamos na fase mais comum e repetitiva. Quando você vê a décima pessoa com o cabelo pintado de azul no ônibus, fica pensando que hoje a originalidade é um uniforme. É como a tatuagem, um gesto de rebeldia na década de 1960. O rebelde atual é aquele que não tem tatuagem. Estamos privando pela falta de originalidade.
A tecnologia, ao mesmo tempo que divulga informações falsas, também ajuda a revelar a verdade?
Sim, a tecnologia é neutra. O martelo pode tanto pregar um prego como matar uma pessoa. Você usa de acordo com a sua vontade. Mas eu acho que temos muita informação e pouca formação. Pouca paciência para sedimentar o conteúdo, de dar tempo ao tempo. Esquecemos que, apesar de a internet ter todos os dados, formar um médico, uma boa cozinheira, um bom arquiteto, uma boa poeta pressupõe anos e anos de experimentação. Alguém me perguntou por que não publico meus poemas. O fato de eu tê-los feito, para algumas pessoas, já funciona como critério para que deva chegar ao grande público, o que não é verdade.
Na sua página no Facebook, você desmente a autoria de um texto. Há muitos textos apócrifos na internet usando seu nome?
Sofro duas coisas: atribuem textos falsos a mim, o que é bastante frequente, mas mais frequente ainda é que frases que eu digo de pessoas importantes sejam captadas numa palestra e virem uma imagem. “A consciência nos torna covardes”, frase do Hamlet num monólogo, está circulando na internet como se fosse minha. Porque alguém ouviu esse trecho da palestra, mas não ouviu a primeira parte, em que cito Hamlet. Já tive frases de Santo Agostinho atribuídas a mim. Gostaria muito
de tê-las dito, porque são boas. E acho até que alguém diz: “Esse Leandro é picareta mesmo. Copia”. Agora, introduzir um texto apócrifo é sempre uma tentativa de lhe conferir poder para melhorar ou atacar alguém.
Qual você gostaria que fosse a palavra deste ano?
Esperança, porque acho que as pessoas não estão vendo horizonte. E, quando você não vê horizonte, você apela ao medo, à violência e aos messias. A democracia sempre aposta na esperança. A esperança não é racional, mas é uma boa técnica. Não vale a pena casar, matematicamente. Não vale a pena tomar banho, porque
você vai feder de novo. Nada em si vale a pena. Tudo contém o seu contrário. É a esperança que faz com que, sabendo que o fim é inevitável e a morte é certa, mesmo assim se continue fazendo o bom, o belo, o correto e o ético. Eu acho que a esperança é fundamental. De todos os opiáceos que produzimos, acho a esperança o mais poderoso.