Na visão do guru brasileiro Prem Baba, o pai do amor, como diz a tradução em sânscrito, a relação amorosa entre duas pessoas é o terreno mais propício ao crescimento interior e, consequentemente, social e humanitário
Como amar de maneira construtiva – sem possessividades, ofensas, machucados? Esse questionamento é fonte de angústia para milhares de pessoas. O desgaste emocional é tão abrangente entre os povos que Sri Prem Baba decidiu responder de uma tacada só aos corações aflitos que o procuram. Amar e Ser Livre – As Bases para uma Nova Sociedade (ed. Dummar/Agir), seu novo livro, chega fincado em experiências pessoais – o guru foi casado três vezes – e na observação do comportamento humano. Prem Baba, que completa 50 anos este mês, é formado em psicologia e bebeu nas mais diversas fontes do autoconhecimento – do tantra à medicina tradicional chinesa, do xamanismo à terapia de vidas passadas, passando pelos ensinamentos de Osho – até se tornar, aos 33 anos, discípulo de Sri Hans Raj Sachcha Baba Maharajji (1922-2011), líder do ashram Sachcha Dham, em Rishikesh, na Índia. Agora o herdeiro da antiga linhagem indiana nos alerta para a importância do relacionamento a dois como catalisador do desenvolvimento espiritual. Na entrevista a seguir, realizada na Escola do Coração, em São Paulo, o guru, que se reveza entre o ashram indiano, o de Nazaré Paulista, interior de São Paulo, e o de Alto Paraíso (GO), explica por que o amor entre duas pessoas transcende à ideia do eu e do meu e impacta no aprimoramento da vida em sociedade.
Por que escrever um livro sobre relacionamento a dois?
Porque o casamento é a raiz da árvore da família e, consequentemente, da sociedade. Enquanto não formos capazes de criar relações construtivas e harmoniosas, não vamos ter uma sociedade também construtiva e harmoniosa. Se nas relações afetivossexuais estamos manifestando nosso lado sombrio, controle, desejo de dominação, ciúme e todos os outros aspectos que se manifestam num jogo de acusações, numa ausência de autorresponsabilidade, isso vai se perpetuando na criação dos fi lhos. Por outro lado, se os casais tivessem mais consciência, teríamos crianças mais afinadas com a cultura de paz e de prosperidade, capazes de se sentir encaixadas no mundo, podendo oferecer a ele seus dons e talentos. Hoje, vemos a ignorância procriando ignorância, o que tem gerado esse estado caótico de falta de sentido ao qual chegamos. Essa angústia existencial profunda, que se manifesta de tão diferentes maneiras.
Nós replicamos no mundo a dinâmica do nosso núcleo primordial?
Sim. Essa é a lógica da psique. A criança aprende por meio do exemplo. Nasce amando e confiando. Porém, logo aprende a sentir ciúme, a desconfiar, a ser possessiva. Se aprende em casa que vai receber atenção fazendo o outro se sentir inferior, tem uma arma nas mãos. Se ela sente que terá algumas necessidades atendidas acusando o outro, colocando a culpa na conta do outro, vai repetir esse roteiro. Então, automaticamente, a criança começa a nublar o aspecto luminoso que traz consigo. Isso faz com que ela crie uma série de relações negativas, nas quais se machuca e machuca o outro, o chamado círculo vicioso do sadomasoquismo.
Muitos casais se perdem em meio a cobranças, acusações e incompreensões mútuas por pura inconsciência?
Sim, porque eles não se conhecem. Desconhecem, sobretudo, o fato de que cada um está onde se coloca. O indivíduo que se acredita uma vítima indefesa do mundo exterior está sempre buscando um culpado. Na base dessa crença reside a ideia de que a felicidade depende do outro, que ela vem de fora. Essa é uma crença tremendamente destrutiva que tem gerado muita miséria na vida humana. Isso ocorre em todas as relações, mas torna-se mais evidente nos laços afetivossexuais, porque sofremos da “Síndrome de Wall Disney”. A fantasia de que um dia aparecerá o príncipe ou a princesa encantada que aplacará nosso sofrimento. A chance da felicidade eterna. Isso é mentira. Não existe. O outro não tem o poder de nos dar a felicidade. Libertar-se desse jogo de acusações no qual estamos viciados requer esforço. Por isso tanta gente prefere continuar adormecida. É mais fácil.
O que está por trás dessa dificuldade de ruptura com o que nos faz mal?
Uma mecânica inconsciente que nos torna dependentes de hábitos destrutivos. Em outras palavras, existe um prazer distorcido em machucar e ser machucado. A pessoa repete situações e não percebe que está se comportando de um jeito que atrai a raiva do outro, o ciúme do outro, em suma, o pior do outro. Permanece hipnotizada pela ideia de que é uma vítima e o outro é o culpado.
Mecanismos inconscientes também estão diretamente ligados à escolha dos nossos parceiros afetivos?
Mesmo sem perceber, nós escolhemos a dedo os parceiros e as parceiras com os quais nos relacionamos. Atraímos sempre a pessoa que tem o melhor e o pior dos nossos pais. Trata-se de matemática psíquica. Explico: essas pessoas nos trazem a possibilidade de curarmos aquilo que ainda não foi curado dentro de nós na relação familiar. Representam uma chance para dissolvermos mágoas, ressentimentos, apegos ao passado, sonhos não vividos, contas abertas de alguma maneira. A outra razão é que carregamos a esperança mágica de que da próxima vez será diferente.
Pode dar um exemplo?
Vamos supor que uma mulher carregue um ressentimento em relação ao pai. Algo que não pôde ser resolvido, lágrimas que não puderam ser derramadas, protestos que não foram enunciados e, por mais que ela siga se relacionando com ele de forma aparentemente normal, se for sincera verá que lá no fundo existe uma barreira. E é óbvio que isso irá se manifestar na relação com o masculino de maneira geral. Essa é outra lei psíquica. A mulher projeta nos homens os elementos mal resolvidos com a fi gura paterna. O mesmo se aplica ao homem em relação às mulheres. Por isso digo que projetamos no parceiro uma esperança mágica – mágica porque nunca se realiza. A pessoa espera que na próxima vez será respeitada, compreendida, atendida, amada, mas nunca é. Segue fortalecendo a crença de que a felicidade vem de fora. Então passa a vida inteira forçando o outro a amá-la, a atender as suas expectativas, porque não percebe que está projetando nele esse passado que não foi elaborado, integrado, curado.
Como é possível frear essa tendência?
Ao entrar em sofrimento numa relação, o primeiro ponto a ser compreendido é que o problema não está no relacionamento em si, no outro, mas dentro de cada um de nós. Se, em vez de cair no jogo de acusações, que é o hábito nocivo da grande maioria da humanidade, você parar para identificar a sua responsabilidade – o que é que em mim está atraindo essa situação? O que em mim está me perturbando? –, independentemente do erro do outro, aí você abre uma porta e começa a acessar seu inconsciente. Só assim tem a chance de encontrar as contas abertas do passado que ainda não foram integradas, resolvidas. Em seguida, tem de reparar algumas relações que carecem de restauro. Porque enquanto não restaurá-las continuará reproduzindo-as nos encontros pela vida afora. E quanto maior o vínculo afetivossexual, mais intensa será essa repetição e a própria projeção. Não adianta querer resolver o passado forçando o outro a ser diferente. É impossível transformar o outro. Só podemos mudar a nós mesmos. E também não vamos alterar o passado. Apenas conseguimos ressignificá-lo, olhar diferente. De frente.
É por isso que o senhor afirma no livro que o amor requer coragem?
Embora seja a seiva da vida, amar é dificílimo. Isso porque nossa essência foi encoberta por muitas capas – inclusive orgulho, uma grande armadura que serve para esconder nossas fragilidades. Para retirá-las precisamos de coragem, sim, pois temos de nos tornar humildemente vulneráveis como a criança que fomos um dia. A criança pega na mão do pai e vai. Confia. Em algum momento, a criança se machucou, seu chão desapareceu, roubando-lhe a confiança. Por isso, precisou usar essa armadura. Como a maioria das pessoas não quer se sentir frágil, segue protegida, colocando a culpa no outro.
Outra possibilidade é seguir amortecido, desligado dos sentimentos?
Quando alguém investiga sua responsabilidade na relação, entra em contato com sentimentos guardados, difíceis de se lidar e, por isso, amortecidos. Uma forma de amortecê-los é através da normose. A pessoa vai empurrando a vida do jeito que dá, inconscientemente. Uma anestesia que não permite sentir. A pessoa desliga. Mas em algum momento a vida irá chacoalhá-la para que volte aos trilhos do coração (um caminho de liberdade, que segue conscientemente a vontade da alma mais do que tudo). A intensidade do chacoalhão para tirá-la da anestesia é proporcional ao amortecimento.
O chacoalhão desperta para o amor que, como o senhor diz, está em estado adormecido em nós?
Sem o amor, levamos a vida como sonâmbulos. Despertar o amor equivale a iluminar as sombras que nos habitam, significa sair do encantamento, transformar o medo e o ódio em confiança, o sofrimento em alegria.
Depois do chacoalhão vem a cura?
A cura só se manifesta completamente quando a pessoa chega a ponto de agradecer pelas dificuldades pelas quais passou. É preciso se libertar do passado se harmonizando com ele, e não fugindo do vivido. Só assim poderemos nos ancorar verdadeiramente no momento presente, onde reside a chance da alegria sem causa, a oportunidade de experienciar a liberdade e a paz que tanto buscamos.
Só o amor leva à compaixão?
Esse é o estágio final, o amor maduro, completamente emancipado, quando você ama o outro a ponto de deixá-lo livre para não amar você.
Esse caminho é acessível a qualquer ser humano?
Todos nós estamos caminhando para esse lugar que é poder amar sem querer nada em troca. Mas se um casal já manifesta valores como autorresponsabilidade, honestidade, gentileza, posso dizer que conseguiu transitar do velho para o novo casamento. Enquanto o primeiro modelo nos leva a forçar o outro a dar o que não tem para dar, o segundo acontece entre duas pessoas mais conscientes, onde, no mínimo, cada um consegue ser honesto consigo mesmo e com o outro, onde se consegue estar comprometido com a reciprocidade, que nada mais é do que estar com o outro de verdade, abrindo mão dos pactos de vingança, do jogo de disputas e acusações, caminhando juntos. O parceiro que amadurece para isso também é capaz de abordar o erro do outro sem acusá-lo, com a intenção de contribuir para o crescimento alheio.
Ainda assim a imensa maioria das pessoas tem dificuldade de conciliar amor e liberdade…
Sinto que só é possível atingirmos a meta maior da vida, que é a experiência da liberdade, se estivermos amando conscientemente. Enquanto o amor não amadurece a ponto de não se querer nada em troca, ainda se é prisioneiro de si mesmo, dos próprios impulsos inconscientes, além de dependente do outro, até mesmo das dificuldades do outro. Muitas vezes somos codependentes do sofrimento do nosso parceiro. Precisamos que ele seja triste, se sinta fracassado e impotente para que nos sintamos fortes. Por isso, amar e ser livre é a base de uma nova sociedade que possa vibrar em paz, prosperidade e alegria.
Em um trecho do livro, o senhor fala sobre uma mulher que pede conselhos para se desapegar do homem que ama…
Sim. E digo que ela só precisa de um remédio para isso: amar a pessoa que ela acredita amar. Pois uma coisa são as crenças sobre o amor, outra é a experiência do amor em si. O verdadeiro amor é o solvente para os apegos, é o solvente para as dependências e a cura para o ciúme e a possessividade.
Também é possível um relacionamento esgotar em si mesmo a capacidade de oferecer crescimento ao casal?
Se os dois parceiros estão realmente se dedicando ao processo de autoconhecimento, é bem possível que fi quem juntos a vida toda. No entanto, às vezes, um dá um salto, o outro não. Ou por alguma razão ocorre um desencontro e a relação deixa de ser uma oportunidade mútua. Nesses casos, não tem sentido permanecer junto. Tirando todo o romantismo, o relacionamento é uma escola em contínuo processo evolutivo. Essa é a razão da existência. O relacionamento é um caminho, um meio, e não a estação de chegada.